Millor Fernandes:


Jornalismo, por princípio, é oposição – oposição a tudo, inclusive à oposição. Ninguém deve ficar acima de qualquer suspeita; para o jornalista, não existem santos.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Laicismo ou Perseguição Religiosa?

Provavelmente uma das ideias mais repetidas e defendidas, porém mal compreendidas, é a do estado laico. Frequentemente, a justificativa de que "O Estado é Laico" é usado com interesses muito mais escusos em jogo.

Recentemente, o jogador Neymar recebeu uma carta de reclamação do COI por usar uma faixa escrita "100% Jesus". Um vereador de São Paulo aproveitou a situação para criticar a ação do jogador nas redes sociais, partindo do princípio de que isso de alguma forma possui qualquer relação com o estado laico, e não com um regulamento privado feito pelo comitê organizador do evento.



É difícil pensar, entretanto, que princípio do laicismo demanda que manter a religião "na vida privada" significa suprimir qualquer manifestação de fé religiosa em lugares que não sejam a igreja e a própria casa. A intenção, aqui, parece ser a de simplesmente banir da vida pública qualquer manifestação de fé religiosa.

O que frequentemente parece escapar às discussões sobre o assunto é que laicismo não é sinônimo de ausência de fé religiosa e muito menos de supressão ou neutralidade. O Estado Laico é simplesmente uma forma de garantir a liberdade religiosa e, consequentemente, a liberdade de crença e de consciência.

Como diz Thomas Sowell, até mesmo o famoso "muro de separação entre igreja e estado" sequer existe na constituição americana. Tampouco se referia a qualquer princípio arcano, mas sim a uma situação com a qual os pais fundadores estavam bastante familiarizados. Acontece que a Inglaterra tinha uma igreja oficial, financiada com dinheiro dos impostos, e cujos membros e afiliados gozavam de certos privilégios legais. O que a primeira ementa fez foi simplesmente proibir o congresso americano de fazer o mesmo.

O laicismo é antes de tudo uma limitação ao estado, não ao indivíduo. É um poder de veto que impede a concessão de poder e de privilégios políticos a grupos ou seitas religiosas e que impede que o estado tenha uma religião oficial. Mas a imposição de neutralidade religiosa é uma conclusão que não deriva desta premissa. Seria como dizer que posso obrigar o meu vizinho a pintar sua casa de preto apenas porque a prefeitura não pode obrigá-lo a pintá-la de branco. Ou afirmar que o indivíduo não pode ostentar a bandeira de nenhuma ideologia ou partido político dentro de sua propriedade apenas porque a suástica nazista é proibida.

Da mesma forma, é inconsistente - se não desonesto - dizer que a constituição brasileira impõe a neutralidade religiosa a menos que a constituição assim o especifique. Mesmo sem conhecê-la, é difícil crer que assim o seja quando até mesmo nossas cédulas de real levam a inscrição "Deus seja louvado".

Alguns poderão dizer que isso fere o princípio do estado laico, assim como o fato de haver imagens religiosas em tribunais ou no congresso. Mas, novamente, o laicismo não impõe a neutralidade ou a supressão de fé religiosa, apenas proíbe a imposição de uma crença e de privilégios para grupos religiosos. Não é incomum, por exemplo, que nos EUA o Congresso e até mesmo a Suprema Corte comecem suas atividades com uma oração. Pesquisas de opinião também mostram que parte considerável da população norte americana já admitiu que não votaria em um presidente ateu. No entanto, nada disso muda o fato de que os EUA continuam sendo um dos países que mais respeitam a liberdade religiosa.

Outra ideia consiste em afirmar que, em um estado laico, a crença religiosa não deve interferir na política. Mesmo assim, é questionável se isso é realmente desejável, ou sequer possível. Boa parte da atmosfera moral da sociedade se baseia na religião predominante. Em muitos países islâmicos, por exemplo, as autoridades ainda fazem vista grossa a assassinatos por honra por considerá-los justificados.

É inegável de que, ao longo dos últimos séculos, diversos avanços civilizacionais importantíssimos foram alcançados, mas que, no entanto, não são universalmente aceitos. Dentre esses podemos citar a condenação da escravidão (o Estado Islâmico e outras seitas similares ainda permitem que se tenha escravas sexuais), da conquista militar, da pedofilia, dos assassinatos por honra, do racismo, da violência e da intolerância. Não é de todo improvável que tais avanços sejam defendidos baseados em preceitos religiosos. Nesses casos, a religião pode muito bem ser uma importante forma de defesa contra a tirania. Se, em um país altamente repressor e intolerante, alguém se dispuser a defender a liberdade e a tolerância baseando-se em princípios ou em uma moral religiosa, será que algum secularista ousaria se opor apenas porque sua defesa é de cunho religioso?

Leis devem ser defendidas ou atacadas por suas consequências, independente das motivações que levaram as pessoas a fazê-las. Se a lei é boa e a motivação é de cunho religioso, por que se opor? O que é difícil de entender é que tipo de princípio ou justificativa faz com que seja legítimo defender ou propor uma política ou uma legislação se motivada por razões ideológicas, mas ilegítimo se motivado por razões religiosas. Se tal princípio ou justificativa não existe, então é inconsistente dizer que há algo de ilegítimo em se propor uma política tendo-se por base alguma crença religiosa. 

Um exemplo para tornar mais claro. Se as pessoas que votaram contra a legalização do aborto o fizeram por considerá-lo imoral, e se elas o consideram imoral primariamente por influência da religião, seria de fato factível esperar que as convicções religiosas não interfiram no resultado da votação? Ou: por que o fato de terem votado desta forma haveria de ser incompatível com um estado laico?

Voltando um pouco no tempo, antes que escravidão pudesse ser legalmente abolida, foi necessário que a população aceitasse um código moral que considere a escravidão uma atitude abominável. E a religião é frequentemente o principal alicerce ao qual as pessoas se apegam quando há necessidade de se defender algum valor ou algum código de moralidade. Impedir que se faça isso no âmbito político não é laicismo, mas sim perseguição religiosa, pois é a exata antítese da liberdade de crença e de consciência. Impedir a manifestação de crença religiosa na arena política não fará com que as pessoas não as levem em consideração na hora de votar ou de apoiar suas causas ou bandeiras políticas. Muito pelo contrário: a manifestação aberta de crença religiosa não está em conflito com o estado laico, mas o confirma, uma vez que é exatamente o tipo de coisa que o indivíduo não pode fazer em um estado que não respeite a liberdade religiosa.

A polêmica causada durante a votação do Impeachment ilustra isso. Fez-se muita "polêmica" por causa de senadores que votaram em nome de Deus e da família, ainda que outros tenham dedicado seus votos a terroristas como Marighella e Che Guevara. Que princípio definidor do estado laico, exatamente, faz com que seja legítimo votar em nome de revolucionários assassinos e ideologias sanguinárias, mas ilegítimo votar em nome de Deus, da família ou de convicções religiosas?

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